sábado, março 08, 2008

Diário de Simone de Beauvoir em sua passagem pelo Brasil

Materia retirada do Jornal Correio Brasiliense de hoje http://www2.correioweb.com.br/cbonline/cidades/pri_cid_196.htm

Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher e ao centenário do nascimento de Simone de Beauvoir (1908-1986), o Correio publica os principais trechos do diário brasileiro da dama do feminismo. O diário de Simone é um documento precioso. Com rigor de antropóloga e palavras de escritora, ela anotava tudo o que via pelo caminho. São 50 páginas de impressões sobre as cidades brasileiras, os costumes, as misérias e os preconceitos contra a mulher. Os relatos estão publicados no livro Sob o signo da história, esgotado no país desde 1965 e sem perspectiva de retornar às prateleiras...

Trechos dos relatos da escritora sobre a viagem pelo Brasil

Desembarque
“Eles não estão conseguindo descer o trem de pouso”, disse-me Sartre. Pensei: “Conseguirão?”. Nada de mal podia acontecer àquela hora, sob aquele céu, no limiar de um continente novo.

Sabores
Bebi a minha primeira batida: uma mistura de cachaça e suco de limão... Conheci também o sabor do maracujá – a fruta da paixão – cujo suco de uma rica tonalidade amarela enchia as garrafas. Amado encheu meu copo de suco de caju: pensava, como eu, que é pela boca que, em grande parte, se conhece um país...

As brasileiras
Falei sobre mulheres em uma grande sala diante de damas paramentadas, que pensam exatamente o contrário do que eu dizia. Uma jovem advogada, porém, agradeceu-me em nome das mulheres que trabalham.

Machismo
A condição das mulheres brasileiras é difícil de definir: varia segundo as regiões. As grandes cidades industriais do Sul são mais liberais… No Nordeste uma moça, mesmo que viva numa favela, não tem nenhuma possibilidade de casar-se, se não é virgem.

Injustiça
No Brasil, quando um homem morre, só a primeira esposa é legatária: a companheira que compartilhou de sua vida, sem contrato oficial, nada herda.

Fome
No Recife, há um mendigo sob cada palmeira, mas naquele ano chovera e os camponeses dos arredores tinham raízes para roer. Nos períodos de seca, eles se abatem sobre a cidade. São 20 milhões de homens que agonizam de fome crônica, em árido polígono de extensão da França.

Filosofia baiana
Amado mostrou-nos as ruas comerciais da Cidade Alta. Na porta da Universidade, lia-se: Filosofia em greve.

Mercado moreno
Os eflúvios do óleo de coco misturavam-se com o cheiro de salmoura; nos barcos ou em terra firme, ia e vinha uma multidão de homens e mulheres, cujas peles, do chocolate ao branco, passavam por todos os matizes do moreno.

Mãe-de-santo
Aqui a religião serve aos pobres e não aos ricos... Advertida de nossa visita, a- mãe-de-santo apresentou-se em sua mais bela vestimenta: saias, anáguas, xales, colares e jóias. Era viva, tagarela e maliciosa. Consultou os búzios para saber de que espírito dependíamos: Sartre era Oxalá e eu, Oxum.

Filhas-de-santo
O automóvel nos levou, à noite, através dessas montanhas russas que são os subúrbios da Bahia, até as casas longínqüas, onde rufavam tambores... Uma jovem negra terminava o ciclo de sua iniciação. Cabeça raspada, vestida de branco, permaneceu deitada no chão durante toda a primeira parte da noite. Gemia, ligeiramente, o olhar fixado no invisível, presente e ao mesmo tempo longe, como meu pai em sua agonia. Por fim, entrou em transe, retirou-se e voltou transfigurada por uma alegria misteriosa.

Redenção
Fiz a pergunta clássica: “Como se explicam esses transes?”. Esses fatos nada têm de patológico, são de ordem cultural; encontram-se, análogos, em toda parte em que os indivíduos estão divididos entre duas civilizações. Constrangidos a se curvar ao mundo ocidental, os negros da Bahia, outrora escravos, hoje explorados, sofrem uma opressão que vai até a desapossá-los de si mesmos. Como defesa, não lhes basta preservar seus costumes, suas tradições, suas crenças. Então, cultivam as técnicas que os ajudam a se arrancar, pelo êxtase, da personalidade falsa em que os aprisionaram. Exatamente no momento em que parecem perder-se é que se reencontram: possuídos sim, mas por sua própria verdade.

Inferno em Itabuna
Gastamos três horas para chegar ao fim da estrada, cheia de barrancos… Entramos em um recinto pouco iluminado, onde mulheres extenuadas amassavam, com seus pés nus, folhas de fumo; ao odor ocre juntava o cheiro das latrinas, onde amontoados de imundícies se decompunham ao sol. Tive a impressão de um inferno, com mulheres condenadas a patinar sobre os próprios excrementos.

Rio de Janeiro
Toda a cidade se convulsiona em morros e pães de açúcar, atravessados, subterraneamente por avenidas. Esses montes são cobertos de verde; a floresta invade a cidade que o oceano também sitia: nenhuma outra grande cidade pertence tão inteiramente à natureza.

Mulatas
Um domingo, subindo uma nova avenida, cortada por um canal, notamos homens de camisa cor de rosa, amarelas, verdes (que é a cor favorita dos brasileiros) conversando e rindo com mulheres, debruçadas aos cachos nas janelas de grandes casas baixas. Pelas portas entreabertas, vimos sentadas, em escadas, belas mulatas em roupa de banho. Nada de clandestino, às claras.

Morro da Babilônia, Leme
Miséria, sujeira, doença, a mesma coisa que em todas as outras; porém com uma particularidade: lá morava uma religiosa, irmã Renata, filha de um cônsul francês. Surpreendeu-nos por sua inteligência, sua cultura e seu bom senso materialista. “Falaremos de Deus a essa gente, quando tiverem água... Primeiro o esgoto, e a moral depois. São acusados por uma porção de crimes, mas acho que, nas condições em que vivem, até os cometem pouco.”

Drogas
Na mesa de irmã Renata, havia um grande livro sobre a maconha: homens e mulheres intoxicavam-se na favela. Aos sábados à noite, celebravam macumbas muito diferentes da Bahia...o transe era uma aventura individual e não coletiva, os iniciados queimavam-se e feriam-se... No domingo de manhã, Renata os medicava.

Zélia Gattai
Tinha personalidade e calor, observação aguda e conversa viva; achei sua presença tônica e era uma das raras mulheres com quem eu ria.

Oscar Niemeyer
Niemeyer morava nas alturas, em uma mansão, obra sua, que mais parecia uma escultura abstrata do que uma casa: um telhado cobria o terraço e o estúdio abria-se inteiramente, sob o céu. Ofereceu-nos gim-tônica e conversamos como se nos conhecêssemos há muito tempo. Construir, em todos os seus detalhes, uma cidade é, para um arquiteto, uma extraordinária oportunidade; ele estava satisfeito com JK por lhe ter ferecido essa oportunidade e tê-la sustentado contra todos e contra tudo.

Bossa nova
Encontramos (na casa de Cacá Diegues) um bando de moças e rapazes da bossa nova… Sartre disse-me, ao sair, que diante das moças sentia constrangimento. Olhava, com encanto, o rosto agradável e as formas generosas e verificava que estava olhando uma menina de 13 anos!

Neuroses masculinas
Passamos a noite na fazenda do diretor do Estado de São Paulo. É um jornal da direita, mas bem diferente dos do nosso país… Durante o jantar, M. (Júlio Mesquita) atacou as mulheres que fumam: o fumo exaspera, segundo ele, as neuroses do nosso sexo. Sua mulher, que parecia ter os nervos bem no lugar, conduziu-nos aos grandes quartos antigos preparados para nós.

Ciúmes?
Sartre tornou-se muito popular entre os jovens...Em todas as esquinas nos abordavam. “Que pensa a seu respeito, Monsieur Sartre?”, perguntou-lhe uma jovem no fim de uma conferência. “Não sei”, respondeu ele, rindo. “Nunca me encontrei”. “Que pena para o senhor”, disse ela.

A caminho da capital
Niemeyer prometera enviar-nos de Brasília uma perua e um motorista — ninguém apareceu, a viagem começava mal... Enfim, o carro surgiu, conduzido por um homem de bigodes… No caminho, compreendemos a razão de seus atrasos. A mala do carro estava cheia de relógios e jóias. Acumulava as funções de motorista e de polícia, o que facultava frutuosos contatos com um tipo de trabalho muito importante no Brasil: os contrabando. Confiscava-lhes, ou comprava-lhes a preço baixo suas mercadorias, que os habitantes de Brasília, isolados do mundo, adquiriam a preços caríssimos...

Brasília
À noite, enfim, chegamos a Brasília. Uma maquete em tamanho natural. Essa falta de humanidade salta logo aos olhos… Só se pode circular de automóvel… A rua, esse lugar de encontro entre moradores e turistas, lojas e residências, sempre imprevista — a rua, tão cativante em Chicago como no Rio, por vezes deserta e sonhadora, mas cujo silêncio é vivo. A rua em Brasília não existe nem existirá.

Palácio da Alvorada
Muito longe, no mínimo a 10km, ergue-se o Palácio da Alvorada, onde reside o presidente... Em um lago, duas ninfas de bronze ocupam-se em se pentear: dizem que elas representam as duas filhas de JK arrancando os cabelos porque relegadas a Brasília.

JK
Tivemos com ele, em seu gabinete, uma breve conversa, bastante formal. Ele encara Brasília como obra sua, pessoal. Na Praça dos Três Poderes há um museu consagrado à história da nova cidade. Dir-se-ia uma escultura abstrata; simples, inesperado e muito belo; infelizmente, de uma das paredes, surge, em tamanho maior que o natural e verde, a cabeça de Juscelino.

Cidade livre
A impressão é de uma cidade do faroeste...a calçada é uma confusão; pisam-nos os pés, a poeira avermelha nossos sapatos, entra em nossos ouvidos, irrita nossas narinas, arranha nossos olhos, o sol nos castiga. No entanto, nos sentimos felizes, porque nos reencontramos na terra dos homens.

Risos
Freqüentemente acontecem incêndios; a madeira, naquela secura, inflama-se com rapidez; pouco antes de nossa chegada um quarteirão pegara fogo; não houve vítimas, mas viam-se, por toda parte, escombros, destroços, móveis enegrecidos, sucata, colchões rasgados. Esquecíamos, porém, essa tristeza, vendo pelas ruas, da Cidade Livre os candangos abraçando-se e rindo. Eles não riam em Brasília.

Mito ou monstro
Jorge Amado reconhecia que Brasília era um mito...Guardo a impressão de ter visto nascer um monstro, cujo coração e pulmão funcionam artificialmente, graças a processos de um custo mirabolante.

Sozinhos na Amazônia
Sartre não tinha vontade de ir à Amazônia, onde ninguém nos convidara, aliás. Sobrevoei o Amazonas ao mesmo tempo arrebatada e despeitada, pois sabia que não voltaria a ver nenhuma daquelas coisas.

Pressa de voltar
Eu já não mais podia sustentar-me em pé; a terra parecia ter febre, Deitei-me. “Vamos partir mesmo assim?”, perguntou-me Sartre. Sim! Ah, sim! Eu tinha pressa de chegar a Recife e a Paris.

Miséria
Durante dois meses, amei o Brasil. Amo-o ainda. Naquele momento, porém, quase cheguei ao ponto de gritar contra a seca, a fome, contra toda aquela angústia, aquela miséria. Ardi em febre. Pela manhã, cometi a imprudência de chamar um médico. Diagnosticou tifo... Mandou me remover para o hospital de doenças tropicais.

À moda antiga
A eternidade durou sete dias. Disse ao médico que queria partir.. . As irmãs T. (Cristina e Lúcia Tavares) ofereceram-me sua casa em Recife. Passei três dias em um quarto mobiliado à antiga. O calor me sitiava. Uma noite, o médico viria me visitar. Disse a Sartre e às irmãs T. que fossem jantar. Elas se recusaram: não se deve deixar um homem sozinho com uma mulher, mesmo da minha idade, em uma casa.

Adeus
Na noite de nossa partida, um vendaval varria o aeroporto. Durante horas, embotados, sonolentos, esperamos que acalmasse. E enfim embarcamos.

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