quarta-feira, julho 25, 2007

Livro "FODIDO E XEROCADO..."


OBS: o texto abaixo é uma reprodução do préfacil do LIvro FODIDO E XEROCADO...

Registrando algo que não existe.

Desde os longínquos anos 80 e 90, a cada tantos anos me surpreendo com alguma matéria na mídia impressa ou na tevê me informando que o “punk está de volta”. Já deveria ter me acostumado, mas sou ingênuo (praticamente um retardado) e costumo basear minhas impressões no que vivo diariamente. Assim, sempre me pareceu um pouco estranho que algo possa voltar sem ter ido a lugar algum.

A questão é que, neste mercado de secos e molhados que nós chamamos de mundo moderno, as coisas vendem, logo existem. Portanto, o punk voltava à pauta do dia na medida em que os grandes negócios o redescobriam, redesenhavam o pacote e o revendiam.

Mas algo não batia. Afinal, essas mesmas matérias me diziam que o punk era baseado no tal “Faça Você Mesmo”: independência, irreverência a ícones pop e aversão às regras da indústria. Como é que ele só voltava a existir através desta própria indústria, como rótulo para novos ícones pop completamente “dependentes”? Indo mais além, o que havia acontecido entre o fim dos Sex Pistols e o grunge? Aparentemente, citando o Olho Seco, Nada, Nada, Nada!

Percebi então que o que eu e meus amigos fazíamos, os locais que freqüentávamos e as situações que criávamos habitavam alguma espécie de dimensão paralela. Estávamos na época errada. Todos os finais de semana, teimávamos em participar de algo que simplesmente não existia. Felizmente, a maioria ali não havia sido informada e continuava com suas bandas, fanzines, shows e rolês.

Sentíamos que, a qualquer momento, metade das nossas coleções de discos se desintegraria como as fotos do filme “De Volta Para o Futuro”, na cena em que Marty McFly está para beijar a própria mãe. Afinal, eram relíquias de algo que não existia, o punk rock independente dos anos 80 e 90, a era em que, de acordo com as matérias, fora passada sete palmos debaixo da terra.

Ao mesmo tempo, ríamos da ironia de ler na grande mídia o obituário e certidão de renascimento de algo que, ao menos no discurso, era baseado justamente em existir ao largo destas coisas. Assim, continuava simplesmente fazendo, realizando, organizando e curtindo, tentando criar nosso próprio tempo e espaço, onde o “oficial” era irrelevante.

Estávamos pouco preocupados em registrar qualquer coisa formalmente, afinal, nossa memória já bastava e quem não estava lá não nos interessava muito e tampouco se interessava em nós.

Felizmente, uma minoria entre a maioria de músicos, fanzineiros e ativistas discordava. Eram os fotógrafos punks, esta categoria tão pouco valorizada na nossa historiografia de três acordes. Eles sempre estiveram lá, quietos e humildes, aparentemente resignados a registrar algo que os outros faziam.

O que ninguém percebia é que eles estavam construindo às vezes mais do que nós. Enquanto produzíamos decibéis, eles criavam um universo a partir de algo que estava ali, mas passava em brancas nuvens diante de nós. Exatamente como acontecera durante as eras em que o punk, oficialmente, ainda “existia”.

Algo Passa a Existir.

Em seus princípios, um ponto fundamental da estética punk foi a celebração do bizarro. Era a exploração da estranheza como temática e método de confronto. O mainstream e o homem comum não entendiam o que se passava, não eram capazes de engolir aquela estética e se sentiam pessoalmente ofendidos pelo discurso que, ainda que por vezes pouco articulado, teatral e ingênuo, cumpria a função alegada de agredir a maioria silenciosa.

Naqueles anos 70 de cabelos longos e naturalidade, em que roupas, mobília e eletrodomésticos vinham nas cores dos fluídos corporais menos celebrados, se espalhavam pelo mundo imagens de criaturas aparentemente extraterrenas, provenientes de um planeta onde imperava o anti-natural, cabelos desafiando as leis da física, roupas propositalmente desconfortáveis e a intenção clara de espalhar este desconforto para os incautos. Era o punk.

Estas imagens conseguiram chegar ao Brasil, onde encontraram terreno ainda mais fértil, a despeito do nacionalismo equivocado que reduzia a imitação descontextualizada tudo o que não se encaixasse em sua agenda simplista. Como se não bastasse a estética setentista, este era, ainda por cima, um pais tropical, quente, úmido, ainda mais autoritário e com uma cena musical ainda mais conservadora. E eis que surge algo ainda mais bizarro (e de certa forma, mais punk): o punk Brasileiro.

Cinco anos após o boom britânico de ’77, São Paulo passou por seu próprio “jubileu” em 1982, em perfeita sintonia com o florescimento de uma nova forma de punk, ainda mais dura, seca e direta: o hardcore. Gangues, bandas, festivais, tudo naquele ano foi documentado pela imprensa com honestidade variável.

Mas ainda assim, criando uma mitologia a ser cultuada pelos que não estavam lá, através das fotos, documentários e reportagens televisivas. As lentes conseguiam enxergar uma realidade provavelmente pouco percebida pelos participantes, ocupados simplesmente em ser o que eram e fazer o que precisava ser feito.

E eis que, 25 anos depois, neste nosso próprio jubileu do punk brasileiro, a coisa continua fértil como nunca, fermentada por gente que se alimentou da mitologia criada através das imagens da “era heróica” enquanto, sem perceber construímos a nossa própria. Mal sabíamos nós nestes últimos anos que aqueles moleques, onipresentes com suas câmeras, estavam abrindo os portais de um universo paralelo, onde nossos momentos também passariam a pertencer.

Não precisamos de nostalgia de uma era da qual não participamos. Não precisamos invejar lugares onde nunca fomos. A linguagem fotográfica nos ajuda a enxergar a beleza e a importância do que estamos fazendo no aqui e agora. Que não enxergamos no ato, pois estamos, é claro, ocupados demais fazendo nós mesmos.

Não devemos nada a ninguém e não precisamos de ninguém para nos informar da nossa própria relevância ou existência. Está tudo acontecendo, novas contradições vão surgindo e novas razões de ser também. E as lentes continuarão clicando.

Prefácio por Pedro Carvalho

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