

Inferno no Gama
Sucateado, Centro Cultural Itapuã míngua a olhos vistos da comunidade. Moradores sonham com o tombamento do espaço fundado em 1961
Arthur H. Herdy
Especial para o Correio
O descaso do Centro Cultural Itapuã (antigo Cine Itapuã) fez o arquiteto e urbanista Ariomar da Luz Nogueira, 62 anos, decretar luto. Residente na cidade desde 1963, ele não suporta a idéia do histórico espaço cultural transformar-se em sucata a olhos vistos da comunidade. Atualmente, a situação é lastimável. Em vez de ocupar a cabine, os projetores estão no hall de entrada, como se fossem peças decorativas. Na sala destinada à platéia, cadeiras quebradas, e o teto exibe rachaduras. “Na condição de morador da cidade, fico doente ao ver esse abandono”, lamenta.
Autor de 21 monumentos no Gama, incluindo o que homenageia o violeiro Lourival Bandeira, localizado na porta do Centro Cultural Itapuã, Ariomar sonha com o tombamento do espaço inaugurado em 1961. De autoria do deputado Cristiano Araújo (PTB), o projeto-de-lei quer transformar o antigo cinema em patrimônio histórico do Distrito Federal. “Seria uma forma de não sermos rebaixados, tratados em segundo plano. De movimentar toda a sociedade do Gama, colocar nossa cidade no circuito cultural”, acredita Ariomar, que se uniu a outros articuladores culturais da cidade.
Os cálculos para recuperar o espaço já estão feitos. Seria necessário um investimento da ordem de R$ 550 mil. O governo liberou para a reforma, apenas R$ 120 mil. “Apesar do interesse em revitalizar o centro, esse recurso não daria nem para trocar as cadeiras”, conta Divino Gomes, ex-diretor da Divisão de Cultura do Gama e ativista cultural. “Realmente, não dá para fazer muita coisa. Na medida do possível, melhoramos. O alvo é comunidade, privilegiando os produtores culturais”, minimiza Ernesto Ferreira Soares, diretor regional de cultura da Administração do Gama.
Sem a infra-estrutura para exibição de filmes e realizações de produções culturais, o Centro Cultural Itapuã segue subutilizado pela Administração do Gama, com reuniões de comunidade e festas de formaturas, o que deveria ocorrer em outra destinação. “A reforma é prioridade, mas nosso diferencial é acolher todas essas atividades. Quanto ao tombamento, é preciso deixar claro o que pode ser mexido na reforma. Considero essencial ter a liberdade para melhorar este espaço”, ressalva o administrador da cidade, Donizete Andrade. “Tem que ser um projeto de primeira linha. Ficamos muito tempo esperando e não pode ser qualquer coisa”, avisa Ariomar, que se predispôs a doar o projeto de reforma.
Por enquanto, a população do Gama continua sem cinema – as duas salas existentes no Gama Shopping fecharam as portas. O que deixa os moradores angustiados. “Cheguei de Abaeté (MG), aos 6 anos. Lembro do primeiro filme que assisti aqui – sobre a pré-história, com cenários bem malfeitos, mas que para uma criança era fascinante”, relembra Cláudio Alcântara, 48 anos, um dos fundadores do Cineclube Porta Aberta.
Cláudio Alcântara acompanha com medo o destino do Centro Cultural Itapuã, que já exibiu desde as chanchadas da Atlântida aos filmes religiosos, que arrebanhavam fiéis, principalmente na Semana Santa. Alerta e mobiliza a comunidade para a importância do espaço cultural, que priorizou a produção nacional, na época representado pela Empresa Cinematográfica Sá Pinto. “Do projetista, passando pela bilheteira e até o porteiro, todos eram apaixonados por cinema ali. Pelas manhãs, com o Cineclube, realizávamos sessões infantis. A gente carregava os projetores para as escolas ou organizava pequenas excursões para lá. Com um saquinho de balinhas na mão e um filme bom na tela, todos se encantavam”, conta Alcântara.
LINHA DO TEMPO
1961
Em março, apenas meses depois da criação da cidade do Gama, era inaugurado
o Cine Itapuã. A sala era parte da Empresa Cinematográfica Paulo Sá Pinto, responsável por várias outras no Brasil, e uma das pioneiras na exibição de cinemascope no país. O requinte do cinema era visto já na fachada, projeto de um arquiteto italiano. Filmes brasileiros e infantis marcavam as exibições, que lotavam o cinema. Na Semana Santa, as produções religiosas atraiam centenas de espectadores.
1986
O conglomerado de supermercados Casa da Banha por pouco não compra o Cine Itapuã. A mobilização popular fez com que o cinema fosse adquirido pelo GDF.
Para incentivar o comércio local nos arredores, linha de crédito foi criada pelo Banco de Brasília (BRB) especialmente para aqueles comerciantes. O período marcado por produções duvidosas de kung-fu e filmes pornô teve fim com a administração do Cine Clube Porta Aberta. As produções nacionais e de arte dominaram a telona. Entre elas, a polêmica fita francesa Je vous salue, Marie, de Jean-Luc Godard, e as nacionais Feliz ano velho, de Roberto Gervitz, e A marvada carne, de André Klotzel.
1990
A decadência do cinema nacional também derrubou o Cine Itapuã. Mesmo após o tenebroso inverno da produção nacional, o cinema e a cena cultural do lugar não resistiram. Em péssimo estado de conservação, a sala é destinada a encontros da comunidade e shows de rock (não comportados para o lugar). Por muitas vezes, diretores e atores de destaque nacional utilizaram o espaço para debates e palestras para a comunidade após os filmes. O cineasta-bombeiro Afonso Brazza também era movimentador do espaço e lançou suas produções lá incluindo, claro, Inferno no Gama, de 1993.